Luz em Ubatã - História

(Mais um relato do livro Por que mudei de exército) 

Ubatã, próspera cidade cacaueira, às margens do rio das contas. 
     

A igreja adventista era desconhecida ali. Uma grande igreja batista com uns mil e duzentos membros era a maior representante da força protestante no lugar. Doía-me a alma ao sentir a falta de recursos para abrir um trabalho adventista. Nunca faltam recursos para Deus. Falta unicamente fé nos homens.

Hospedado no hotel Iracema, clamei a Deus pedindo proteção e auxílio divino. A oração foi ouvida. Voltando eu de Ibirapitinga, teria que passar por Ubatã. A três quilômetros da cidade, na porta de uma casa de fazenda, dei com um grupo de seis pessoas lendo a Bíblia. Saudei-os e louvei-os por estarem lendo o sagrado livro.

Desmontei do animal, tomei a Bíblia de um deles, abri-a em Apocalipse 13:1:  
“E eu pus-me sobre a areia do mar e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres e sobre suas cabeças um nome de blasfêmia.”  

Terminada a leitura, pedi uma explicação do texto lido. Alegaram não saber. Insisti ainda:

- O seu pastor já lhes disse quem é a besta?

Responderam nunca ter ouvido nada a respeito do texto.

Continuei:

- Acham vocês que a leitura aqui trata de um animal mesmo, ou um poder com feitos selvagens?

- Nada sabemos – responderam.

Abri o sagrado livro, dei um estudo muito intuitivo, que os deixou espantados.

- Nunca vimos uma coisa desta. Jamais ouvimos a Bíblia falar tão bonito e claro como agora! O senhor é batista?

Respondi que não.

- É pentecostal? – insistiram.

- Nada disto...

Analisei ser tempo de ir saindo e tomando ar de mistério, fui me encostando na mula, montei-a e dei de rédeas acenando um adeus, enquanto eles insistiam em saber a minha filiação religiosa.

Houvera eu dito que era adventista do sétimo dia e tudo estaria perdido e uma porta seria fechada. Três meses depois voltei e retoquei o estudo e falei sobre a ceia do Senhor e o lava-pés. Acrescentei que Pedro tentara fazer mudanças sobre a ceia quando disse: “Senhor, não somente meus pés, mas também as mãos e a cabeça. Disse-lhe Jesus: Aquele que está lavado, não necessita lavar senão os pés, pois no mais tudo está limpo” S.João 13:9 e 10. Agora ouviram com grande atenção; ficaram ansiosos para saber a nossa filiação  evangélica.

Respondi-lhes:

- Sou um homem que amo ao Senhor Jesus, temo de coração ao meu Deus e Criador e estudo muito Sua Santa Palavra; com ajuda do Santo Espírito de Deus, procuro obedecer-lhe.

Disse Jesus: “A ninguém digais que sou o Cristo.”

 
Assim fiz, nada de dizer que era adventista. Retirei-me certo que tinha adquirido a confiança de quase todos e principalmente da dona da casa; prometi voltar e responder algumas perguntas. Desta vez demorei menos. Trinta dias depois voltei lá. Tomaram todo o tempo em fazer perguntas. Respondi algumas delas e deixei uma porta aberta. Quando ela me perguntou se Jesus guardou o sábado, respondi que sim. Ele guardou o sábado de acordo com a Bíblia e não de acordo com o ensino dos judeus. Os judeus puseram sobre o sábado uma sobrecarga humana, o que Jesus veio tirar para que o santo dia de repouso voltasse à harmonia bíblica e espiritual. Parei por aí e prometi mandar alguém que instruiria neste rumo e em outros mais interessantes da Bíblia.

Dali a quatro léguas morava o irmão Brasilino, também fazendeiro e um notável missionário voluntário. Encarreguei-o de cuidar dos novos interessados. Podíamos confiar na sua habilidade.

Não demorou muito, recebi um aviso do referido irmão dando conta de que o povo pedia o batismo. Mandei um aviso dando o dia exato da minha chegada lá. Fui muito bem recebido e hospedei-me com um genro da família, que morava a uns quinhentos metros da casa da fazenda.

À tardinha fui à casa da fazenda. Aí todos estavam satisfeitos com a nossa identidade e sabiam o meu nome. O irmão Brasilino tinha completado o trabalho, já estavam guardando o sábado e haviam rompido o laço que os unia à igreja batista. Eu já sabia que a dona de casa se chamava Aurelina, e o chefe da família Joveniano Amaral, atendia pelo gracioso diminutivo de “Jove”. O genro se chamava João Hermano, a filha casada tinha o nome de Gedida.

Jove era diácono de sua igreja e o único que não rompera com o seu credo religioso.

A irmã Aurelina abriu a palestra narrando o seu rompimento com o pastor batista:

- Eu era tão amiga dele, que chegando as férias trazíamos o pastor e a família para a nossa casa. Aqui ficava até começar as aulas. Não lhes cobrava um centavo pela estadia. Fazia isso com todo o prazer e alegria como um serviço a Deus.

 
Quando estudei a Bíblia com o irmão Brasilino e com o senhor, pedi contas ao nosso pastor de muitas verdades da Palavra de Deus e notei como são inimigos das claras doutrinas que o Senhor Jesus ensinou. Ele não respeitou nossa sincera amizade. Fui muito franca e disse dos meus planos em observar o repouso do sétimo dia e tudo o mais que tinha aprendido. Agora é meu desejo ser batizada na Igreja Adventista do Sétimo Dia. Só me resta saber tudo a respeito do regime alimentar que devo usar segundo a Bíblia, de agora em diante.

O INIMIGO REAGE – Quando abri o livro santo para o estudo solicitado, notei que o dono da casa pigarreava de quando em quando e isto na região é um sinal de desaprovação daquilo que se está a fazer ou do que se ouve. Também amolava um longo facão de 22 polegadas. O facão, depois de ser um instrumento usado grandemente na roçagem do cacau, serve também para resolver qualquer disputa; a maioria dos crimes no sul baiano, são cometidos com facões em virtude de seu uso ser livre devido à utilidade na lavoura.

Instintivamente parei o estudo e prometi reiniciá-lo em casa do genro onde estava hospedado e retirei-me do local. Não andei muito e ouvi gritos da dona da casa pedindo socorro e clamando em alta voz; “Jove não me mate!!!”  Pelo som dos gritos, sabia-se que a mulher corria rumo aos fundos da casa do genro. Ouvi que fora socorrida pelo genro que reprovava a má ação do sogro. Continuei andando até que deu vontade de olhar para trás. Já bem perto de mim Jove Amaral corria em minha direção de facão em punho, já fora da bainha. Nunca tive tanta coragem como nesse dia memorável. Coragem para correr...corri muito e bem. Naquela ocasião eu tinha quarenta e sete anos. Jove perdeu para mim por dois motivos: já exausto da carreira que tinha dado na esposa, e essa avisara ao genro para me socorrer. Quando ia chegando perto de casa, já o irmão João Hermano vinha em meu socorro e deteve Jove Amaral nas suas intenções maléficas.

Ao entrar na residência do João Hermano dei com a sogra que milagrosamente escapara do facão afiado  do esposo furioso e enraivecido.

Estupefato, ofegante e cansado dirigi-me a ela:

- Veja irmã Aurelina, o que arranjei para vocês!

Ela me olhou serena e confiante:

- Pastor Pita, agora vi e senti a verdade bíblica. Nunca Satanás deu-nos a menor atenção, agora ele insiste em dar tamanho espetáculo. Como disse Cristo: “Não vim trazer a paz, mas a espada.” A minha fé aumentou mais, quando senti a ira de Satanás a me querer esmagar e a mão de Cristo a me suster.

 
Foi uma noite dura, creio a mais dramática da minha carreira missionária. Jove insistiu em arrombar a porta por várias vezes. Ameaçou arranjar uma arma de fogo para nos alvejar. Queimou os móveis da casa dele e toda a roupa da esposa, incluindo seis cortes de linho. Esse tipo de tecido era muito usado pelas pessoas importantes da região. Deitei-me numa rede bem junto à porta da frente. Quando ele chegava para insistir em arrombar a porta, nós orávamos fervorosamente. 

Finalmente veio a manhã. Tinha que viajar e passar bem pelo terreiro da casa de Jove Amaral.  Não havia outro caminho. Esquentei a mula na espora para enfrentar qualquer emergência. Procurei fazer todo silêncio ao passar em frente à casa de Jove; ele estava na janela virado para dentro de casa.

Quando ele se virou para ver quem era, eu já estava fora de seu terreiro. Cheguei a espora no animal e sumi na curva da estrada.

A mão do poderoso Deus me livrara do afiado facão de Jove e de outras investidas de Satanás naquela terrível noite. Atrás de mim ficara uma pobre mulher nas mãos de Deus e um pequeno grupo de seis interessados entregues à própria sorte.

Mas Cristo Vence – As perseguições continuaram; cada vez mais Satanás arregimentava suas hostes contra a boa irmã e o grupo, até que um dia, depois de dois anos de longo sofrimento para a irmã Aurelina, Jove lançou-lhe um sério desafio:

- Se você me mostrar a lei de Deus na sua Bíblia, eu irei guardar o sábado.

Prontamente ela tomou a Bíblia com muita alegria e manuseou-a toda, página por página e nada encontrou. Jove ficou radiante e repetia:

- Bem sabia eu que esses “sabatistas”  estão a enganar os tolos e nada sabem.

A irmã Aurelina não se deu por vencida. Raciocinou; eu ouvi tantas vezes o pastor Pita e Brasilino lerem a lei, eu mesma li...

Pediu ao genro que procurasse a lei de Deus na sua Bíblia. Ele também não encontrou, mas recorreu à outra Bíblia e disse:

- Aqui está! – E leu alguns dos dez preceitos. Voltaram à outra Bíblia que antes tinham usado, vieram a descobrir que a página que continha a lei de Deus tinha sido arrancada do livro cuidadosamente.

Jove tinha extraído do Sagrado Livro a página da lei de Deus, num último esforço para segurar a família no erro.

Foi aí que a irmã Aurelina com o genro tomaram o Livro Sagrado e leram para ele: “E se alguém tirar qualquer palavra do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa que estão escritas neste livro.”  Apoc. 22:19  

Jove desta vez não reagiu e retirou-se calado e desapareceu na estrada rumo à cidade. Voltou à tarde, cabisbaixo, pensativo e calado. Demonstrava ter passado por uma não pequena decepção.

Finalmente a irmã Aurelina se refez e reuniu todas as forças espirituais e resolveu interrogá-lo. Nesse caso no passado era motivo para uma explosão. Ela orava amargurada pelo esposo. Suplicava e clamava a Deus por sua conversão. Então se animou a falar:

- Jove, por que tanta tristeza se temos um Deus no céu e um Advogado para resolver todos os nossos problemas? Cria ânimo e fala com Ele.

Jove fitou a esposa, baixou a cabeça e arrematou:

- Agora nem no céu e nem no inferno.

- Que quer dizer com isto – atalhou a irmã Aurelina.

- Briguei com o pastor da minha igreja. Pedi que mostrasse na Bíblia a passagem que manda santificar o domingo, ele me mostrou o que eu já sabia. Fiquei certo que Deus mesmo e Jesus não fizeram mudanças alguma. Estou triste pensando em ter corrido atrás do pastor Pita com aquele facão; não fora isso, eu iria ser adventista de agora em diante.

Aurelina tomou a palavra e disse:

- De hoje a mais oito dias haverá um congresso adventista em Ipiaú e você irá ser batizado. O que pode acontecer com o pastor Pita é ficar radiante de alegria!

O homem difícil rendeu-se a Deus. Jove agora aceitou o convite da esposa, foi batizado e voltou a sua casa. Alugou um salão em Ubatã, organizou uma escola sabatina. Com o mesmo zelo que tinha por sua igreja, continuou na obra adventista, porém agora um homem moderado e calmo. O trabalho desse homem prosperou em menores proporções, porém parecido com Paulo, o apóstolo nos primórdios do novo testamento.

Quando ele se batizou já não era eu o pastor distrital. No entanto, quando para lá foi o pastor Severino Pimentel, convidou-me para dirigir uma semana de oração em Ubatã. Jove insistiu em me hospedar em seu lar.

“Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração.”

Agora tudo mudara, Jove e eu dormíamos no mesmo cômodo, o facão continuou na bainha e a paz no coração.

Assim, Ubatã conheceu a verdade do advento. Esteve em nossa casa em julho de l976 a secretária da escola sabatina da igreja de Ubatã. Disse-me ter mais que duzentos membros na escola sabatina.

Jove e Aurelina residem em Brasília, não permita Deus que um de nós durma antes de nos abraçarmos ainda.

Oh Deus! Quão insondáveis são os Teus conselhos. Quão numeráveis as Tuas virtudes. Deus meu, Senhor meu, agradeço-Te por me usares como instrumento da Tua glória! E mais por que... Hoje há luz em Ubatã.